passando

.

Não convém se aproximar

prolongar esse momento

ou me dar seu telefone

é tarde e nem sei seu nome

você sabia que há muitos anos

isso era um charque?

ninguém por aqui passava

e veja só

agora estamos a caminhar

passos tranquilos e firmes

nessa calçada de pedras

.

logo a frente tem um ponto de taxi

você pega um carro

sigo a pé

e jamais saberemos se teria dado certo

se teríamos feito alguma viagem

arriscado mais uma vez

melhor assim

.

piso nas pedras sem pressa

e penso que um dia

tudo isso já foi

um charque um pântano

muito antes

homens pré-históricos

enfrentaram seres imensos

há milhões e milhões de anos

e ainda antes

nada

DIáRIO

Os dias se enfileiram

Como soldados sem graça

E sem sentido

Nas paradas da independência

Ela mesma algo controversa

.

Tentar espairecer

Tomar um remédio

Uma água de coco

Sossegar num lugar ao sol

E esperar que passe

.

Acordar com alguma dor

E nem saber exatamente onde

Ou o que anuncia

Para além da velhice

Da noite mal dormida

Das passadas presentes e futuras

Horas enfrentando

A luz fria do computador

sempre um susto

.

Um avião passou rasante

cheguei a imaginar

um homem de óculos e uma jovem bonita

olhando ávidos ou amedrontados pela janela

.

partir é sempre um susto

.

em seguida uma moto

e seu motorista encapuzado

motor sem escapamento

jaqueta de couro em alta velocidade

ensurdeceram os pássaros já tão raros

.

segui pela beira da praia

tirei os sapatos para sentir melhor

a areia e as águas macias

pés descalços são um jeito bom de chorar

cantarolei … baby, baby, eu sei que é assim…

.

9 de novembro de 2022 – em homenagem a Gal Costa

E quem quiser…

Cansei de fingir felicidade

Usar proparoxítonas e saltos altos

Quem quiser me ver

Terá que atravessar a esquina

Desviar disso e daquilo

Tropeçar na dor

Cair na real sem anestesia

E comigo tatear o escuro

Grafitar muros

E (não) pedir socorro

Investigando

Não há nada sobre nós

Nenhum vestígio

.

De tudo se é que houve tudo

Não sobrou nada

.

Uma cidade que submergiu

Ou virou pó num terremoto

.

Melhor assim

Sem histórias para levar

.

Pesadelos ou sonhos

Nem mortos ou vivos

.

Nada a esconder no vão em que repousam

Os anjos que não vingaram

Violentar o silêncio

Desafi(n)ando

Vieram as fiandeiras

Com seus grandes mantos

A cantar mandingas

Atropelaram o século XXI

Com crucifixos e velhas espadas

Seitas e perseguições medievais

Tudo isso revelado instantaneamente

Nas redes sociais

Tudo colorido e frio

Como num disputado game

Onde cabem fotomontagens

Crimes ortográficos

E atentados à toda lógica

Fora das redes

Entre as grades da miséria

E jogos de guerra

Jorra sangue de verdade

frágil

às vezes você quer me ver e não consegue

ainda que eu esteja bem diante do seu nariz

é que qualquer barulho me assusta

e muitas vezes me ausento

deixo o corpo presente

(como os mortos fazem tão bem)

e mergulho em mim

vou tão fundo que escapo

e o caminho de volta

é uma linha frágil que liga

o Tempo ao tempo

aqui

ali