passando

.

Não convém se aproximar

prolongar esse momento

ou me dar seu telefone

é tarde e nem sei seu nome

você sabia que há muitos anos

isso era um charque?

ninguém por aqui passava

e veja só

agora estamos a caminhar

passos tranquilos e firmes

nessa calçada de pedras

.

logo a frente tem um ponto de taxi

você pega um carro

sigo a pé

e jamais saberemos se teria dado certo

se teríamos feito alguma viagem

arriscado mais uma vez

melhor assim

.

piso nas pedras sem pressa

e penso que um dia

tudo isso já foi

um charque um pântano

muito antes

homens pré-históricos

enfrentaram seres imensos

há milhões e milhões de anos

e ainda antes

nada

colocando a vida no lugar

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(tumblr_n7oeyoWiUD1rr2cq6o1_400 em-dissoluvel)

.

o sal no pote de sal

coisas velhas nos sacos de lixo

roupa suja na máquina

os lençóis na cama

livros na estante

de preferência em ordem

alfabética por autor

.

fechar a porta

com cuidado sair 

jogar fora o saco com passados

gastar as horas e a sola dos sapatos

aliviar o coração

tomar água de coco

pra tirar o gosto de fim

. 

abrir a porta com três voltas de chave

recolocar os pingos nos is

a roupa no varal

tomar um banho quente

fazer um chá

e antes de dormir

devolver as estrelas pro céu

cansaço

Foto Taylor James
(foto Taylor James)
.

eu queria fazer coisas com sentido, não, coisas que quebrassem o sentido
ditado pelo que já é posto, pelas forças cotidianas que nos fazem fingir
como se isso fosse o melhor de nós, queria matar um a um os meus medos
deletar passados, mostrar meus seios, abrir o peito e dizer sim ou dizer não
se fosse pra frear um trem descarrilhado, parar o tempo um dia antes
de um acidente rodoviário ou vascular, desfazer armadilhas, desatar

queria meu pensamento não tão disperso, intermitente, incontrolável
não me dividisse em dez, em mil, cada uma um olhar, um paradeiro
é difícil viver num planeta de espelhos por todos os lados
que não me repetem a mesma, não, ao contrário, me denunciam múltipla
diversa e ainda assim confinada a essa pele corpo roupagem

preferia não ter ido ao céu pois ele me deu a dimensão do inferno
se tivesse morado na Bolívia, não teria flertado tanto com o inimigo
batido tantas vezes na porta errada, assaltado noites frias
mas o tempo é isso, nada e tudo, um tambor de revolver
eventualmente vazio, potencialmente um tiro, um lugar escuro

está bem, não foi um bom dia, não queria, juro, incomodar ninguém
com essa minha poesia vômito, feita de sertões e dilúvios
verso que se desdobra, confessa e logo em seguida desdiz
passado, futuro, pretérito, conjugações numa língua difícil
onde cada verbo é um mundo ou mero sentido dúbio para uma noite mal dormida

urdidura

image by Alastair Stockman

não posso dizer que te espero

tão pouco que esqueci de ti

carrego todos os dias um peso

um monte de coisas por dizer ou fazer

uma pressa de quem não tem absolutamente nada depois

medo do deserto, medo do desejo

você iria comigo ao fim do mundo ?

confesso que te deixaria no caminho

alheia ao seu chamado ou não

entretida com algum atalho ou erro

sempre me perco

pelo sim ou pelo que calo

sigo alguém em mim

não sou eu, juro

não fui eu quem te disse tudo que disse

(nem o que você amou em mim)

não fui eu quem rasgou a carta sem ler

ou virou as costas sem ouvir as explicações

não havia mais espaço ou tempo para elas, concorda ?

há um tempo, que parece eterno, onde vamos levando

levando a vida, as brigas, os silêncios,

mas em algum momento, curva ou crise

a última gota faz transbordar a represa

o último oásis faz o deserto assolar o mundo

e parece que tudo aconteceu de repente

tolice, o presente começa lá atrás

e vai arrastando com ele todo o futuro

o que sonhamos, o que desejamos,

o que parecia ser tão certo.

você gostaria de voltar, tentar de novo ?

esta aí uma pergunta que nem tento responder

seria como desmanchar um casaco de crochê

para refazer ponto a ponto

talvez ficasse melhor

mas a marca do anterior estaria ali

denunciando a dor antiga e o desespero novo

a esperança e sua parceira

a noite e sua sombra escura

o sonho e seu pesado elo com a realidade

por isso ou por nada é que calo

não te digo o que penso

e se dissesse não entenderia

guardo as palavras atrás do armário

os sonhos entre as fotos de criança

e minto para mim todo o tempo

invento passeios no fim da tarde

abraços em corredores escuros

invento ondas e areia

tomo sol num dia inventado

furo ondas que são puro pensamento

velejo num barco de cores e traços

naufrago num céu azul anil

durmo e acordo numa cama estranha

e me toco na ânsia de saber de mim

se eu gostaria de reescrever esta história?

acho que sim, mas não tenho coragem, ou força, não sei

você reescreveu qualquer coisa ao falar do seu passado?

tenho medo de voltar

morro de medo de ter sido pior do que já sinto

ou de, ao chegar lá,  não conseguir sair.

em algum lugar do passado (ou beirando o Rio Douro)

Imagem

 

Um tempo sem pressa

nos comboios que levam

para algum lugar sem precisar qual

o caminho se faz ritmo

nos trilhos a segurança

de um percurso sólido

ainda que sem motivos

 

É impossível conter a estranheza

de um sentimento quase nostálgico

sem saber do que

a viagem beira o rio

um rio imenso que rega a terra

a terra áspera que marca o homem

que ali vive com sonhos tão próprios

como a paisagem que avisto

imagem colada na retina

irá com ele aonde ele for

ficará guardada por tantos anos

quantos for preciso para lá um dia voltar

 

E eu, passante por esta e outras vias

atravessando-as com minha perplexidade curiosa

deixo-me marcar pela força da região

que passa a existir um pouco em mim

somada a tantas outras – histórias de homens e de lugares

um passado puro rastro