a noite se aconchega
nas dobras do lençol
espreguiça e se encolhe
sobre o cansaço do dia
suspira e adormece
a noite se aconchega
nas dobras do lençol
espreguiça e se encolhe
sobre o cansaço do dia
suspira e adormece
sob pressão
aceito a proposta
assino as três vias
e me rasgo inteira
recolho os pratos
os versos
as armas
qualquer atitude agora
seria um furacão
máquina de torcer sentidos
faca afiada
moedor de sonhos
.
silencio
o amor que ainda resta
o ódio que brota
a vontade de virar a mesa
e fujo para uma praia distante
onde possa uivar como animal ferido
.
engulo os fatos
embrulho o estômago
e os retalhos daquilo que seria muito
saio sem estardalhaço
sem ilusões
avanço pelos dias
até ganhar distância
você desce as escadas, eu conto os degraus
em algum momento visitamos teus/meus porões
queria te encontrar no caminho e perguntar
se são movediços os teus medos
se no fim dos degraus é o precipício
queria conversar sobre abismos
mas não nos vemos
o que não surpreende
há tanto já não damos as mãos
mesmo nos velhos retratos, repare
parecíamos felizes, mas era só fotografia
mesmo sorrindo cada um olhava
para um horizonte diferente
opostos campos e armadilhas
.
Um avião passou rasante
cheguei a imaginar
um homem de óculos e uma jovem bonita
olhando ávidos ou amedrontados pela janela
.
partir é sempre um susto
.
em seguida uma moto
e seu motorista encapuzado
motor sem escapamento
jaqueta de couro em alta velocidade
ensurdeceram os pássaros já tão raros
.
segui pela beira da praia
tirei os sapatos para sentir melhor
a areia e as águas macias
pés descalços são um jeito bom de chorar
cantarolei … baby, baby, eu sei que é assim…
.
9 de novembro de 2022 – em homenagem a Gal Costa
Você passou lá em casa eu soube
Deve ter esquecido algo
Uma camisa um livro
Ou o próprio esquecimento
.
Às vezes voltamos
Sem perceber ao lugar que era um hábito
Nem bom nem mal
Só algo que sempre se repetia
.
Você passou e eu fiquei imaginando
Seu carro estacionado debaixo da árvore
Que segue lá firme e concreta
Como gente não pode nem deve ser
.
Você passou e eu não vi
Compenetrada que estou
Em trocar cortinas lençóis
Mudar o cheiro da casa
Desentranhar você
.
Já falamos um dia
Quando ainda falávamos e ouvíamos
Que somos feitos de amores
Os nossos e daqueles com quem dormimos
Somos feitos de sonhos
Dos nossos e dos que formamos pares
Parcerias quadrilhas
.
Sei que você entrou na casa
Procurou na geladeira uma cerveja
Na cama seu velho travesseiro
Na estante folheou um ou outro livro
Para saber o que ando lendo
.
Você ficou um tempo aqui
O suficiente exato para deixar seu cheiro
Que tento eliminar
Com janelas abertas e bom ar
.
No banheiro ficou um odor que é só seu
Diferente do meu e de tantos outros
Somos animais mamíferos
Apesar de fingirmos ser etéreos
Cheiramos a mijo e comemos carne
.
Você passou lá
Me contaram ou inventei
Não importa
Esse lá não existe mais
Tudo pode parecer ser o mesmo
Mas a nossa casa não mais
.
Eu mesma volto todos os dias
E constato que os mesmos móveis
As mesmas poltronas e sofá
Não são mais
.
Você passou lá entrou na casa
No mesmo dia e instante
Em que também entrei
Mas a casa é outra
.
Somos outros
Nem mais felizes ou tristes
Só outros
E incomunicáveis
Eu poderia requentar palavras doces
Ou dizer coisas que arranham
Apenas para me fazer presente
.
Mas pensando bem
Não há razão
As palavras são afiadas
E ficam perfurando depois
.
Escolho não mexer
No lado do peito onde guardei
Uma caixa oblíqua de memórias
.
Por isso apenas sorrio
Conto até cem e saio
Como quem entrou por engano
No dia em que o marido partiu
Ela levou o cão ao veterinário
Acreditando que de tão apegado
Adoeceria
O veterinário o examinou
Receitou vermífugo e vitaminas
– Não seria prudente um tranquilizante? –
Ela disse, quase implorando
– por conta da ausência, o senhor entende?
Ele, pouco dado a sentimentalismos, disse apenas
Que não tratava de humanos
.
Ela voltou para casa
Chamou-o pelo nome do marido
E deixou, pela primeira vez,
Que dormisse no quarto bem junto a sua cama
Logo ela, que sempre impôs distâncias