revisitar

sombra

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há sons que transpassam os dias, chuva no telhado, sussurros, talvez lamentos vindos da madeira dos velhos armários. um galo distante na madrugada, goteiras na pia, rezadeiras em prece. ressonâncias, procissões, ressonares.

divido minha perplexidade em várias, o tempo passa e sigo me surpreendendo. sei que não deveria. mas suspeito que esse é um estado permanente. assim desde menina. ou mesmo antes de mim.

conecto-me, ou tento. religar, relicários. ingresso numa religião pré-pós-fim-do-mundo  e quase duvido dessa realidade que nos prende a matéria. penso nas marionetes, numa rebelião de todas elas.

uma coisa te digo, não é fácil ser profundo, nem profano. num mundo assim tão quase, tão clichê. essa palavra sempre me lembra chicletes. mas não quero me dispersar. difícil caminhar sobre pedras quando nem elas são concretas e assumem suas existências temperamentais. confesso. também sofro de turbulências e intempéries. por isso é sempre conveniente manter os cintos de segurança apertados.

costuro um sentido. na gaveta de bordados minha avó cochila entre um crochê e outro. ao lado dela um enorme carretel de linha crua, um outro de fino cordão dourado. as histórias se costuram sem pontos ou moldes premeditados, talvez sem futuro.

há gavetas para tudo, na maioria etiquetas explicam o óbvio, mas em algumas não posso entrar, acho que perdi a chave de uma meia dúzia. minha avó não pode sair da sua para me ajudar. não entendo uma palavra do que dizem os outros seres que por aqui passam.

tento prestar atenção na previsão do tempo para depois de amanhã. chove torrencialmente agora em algum lugar. nem todo avião cai mas todo voo é risco.   

último espetáculo

De um jeito ou outro iriamos nos revelar quando a cortina se abrisse desvendando a verdade e o engano. Poderia levar alguns anos mais, é verdade, sempre há formas de adiar. Fins são sempre doídos.
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Mas foi num dia qualquer, você agindo como sempre, não poderia supor, nem eu, já que fui a feira e comprei pimentões amarelos e vermelhos, tão mais caros que os verdes, só pra dar cor à nossa intimidade já um pouco pálida. É claro que me apercebi disso no depois de tudo.
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Ainda hoje não sei dizer se foram as cores vivas dos pimentões, o amarelo forte do açafrão no arroz, as cortinas da sala fechadas como numa peça que já terminou, o fato é que naquele jantar, apesar do vinho de guarda e das velas, tudo me pareceu prato feito que se come por pura obrigação.
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Em algum momento a chama da vela denunciou aquele lado ou sombra que você sempre esconde, o sorriso um tanto torto, o olhar que me deu medo. Quem seria você? E por que insistíamos nisso? Quem seria eu sem você?
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Caí em mim e soube também do seu tédio. Encenávamos há tanto aquela peça, as falas de sempre e de cor. Nem foi preciso muito esforço para desmontar o cenário e nos tirar de cartaz.

Um dia como outro qualquer

Há dia para tudo, para todos. Hoje se comemorou o dia das Mães. Quem inventou talvez nunca tenha sido mãe, só o tenha feito para vender mais quinquilharias e criar dúvidas: o que comprar para alguém que tem tudo ? E colocar a pessoa na obrigação de ter de inventar algo, só para dizer que lembrou. E desesperar aquele outro que sabe que a mãe necessita de quase tudo, como ele próprio.

Quem criou tal dia talvez não seja mãe, mas tem uma, ou teve. O apelo é comercial, não há dúvida. As lojas se aproveitam disso, as famílias planejam o dia, as crianças pequenas percebem que é um dia especial, mas não o delas, pois não ganham presente. Mas aprendem, desde cedo, que há dias em que se reúnem as famílias e alguns ganham presentes. Aprendem para depois desaprender e, ainda depois, se houver tempo e chance, reaprender.

No Natal ganham todos. Os presentes variam segundo muitas coisas. Nem sempre quem tem mais compra o mais caro. Alguns, que quase nada tem, mergulham num crediário qualquer, mesmo que não o possam pagar, mas, quem sabe, a loteria … Outros, que poderiam comprar uma loja inteira, estão tão tristes ou tão envolvidos consigo mesmos, que mandam a secretária ou qualquer outro escolher, seja lá o que for, só para não passar em branco.

Obrigações. Estas e outras tantas. Podemos fechar os olhos, desligar a TV, não ler jornais, não ouvir rádios. Ainda assim acabaremos pressionados pelo dia disso, daquilo, etc. e tal. E a gente sabe que é uma data vazia – puro apelo comercial – que não deveria existir. Que as pessoas deveriam se abraçar, confraternizar, se presentear quando sentissem um sentimento sincero e profundo neste sentido.

Imagine: você acorda e lembra da sua mãe, de você com ela, numa situação já distante. Lembra dela naquela época, com seu sorriso e rosto mais leve, com a jovialidade que, sem que possamos saber quando ou porque, foi se guardando para alguns raros momentos, como dentro de um sonho ou numa brincadeira aqui ou ali em que a criança acorda dentro da pessoa e, independente de tudo, sorri. Ainda tomado pela lembrança dela assim tão feliz, você compra um presente, ou faz um poema, ou ainda, vai a sua casa e a leva, de surpresa, para lanchar ou almoçar num restaurante especial, ou então tomar sorvete e ver o por do sol . Esse é o dia da sua mãe. E seu também, pois você, e não a mídia, marcou este dia como especial.

Ou seja, um dia para todas as mães é algo inviável, não dá para acreditar que todos os filhos, naquele exato dia queiram, realmente, estar com suas mães. Mas pode ser que os faça lembrar que elas existam, ou ainda, que eles próprios existem dentro de uma instituição que, apesar de muitos considerarem falida, está aí, segurando barras antigas e atuais. Avós recebendo filhos e netos em sua casa por conta de um desemprego. Irmão abrindo a porta para o outro que, por uma separação ou um empreendimento falido, encontra-se temporariamente sem lar.

Mas as instituições estão fragilizadas, o comércio fortalecido. Então vamos comemorar os Dias dos cartões de crédito. E testar a convicção daqueles que dizem que estes dias são pura tolice. Como ? Pergunte a uma mãe para a qual os filhos sequer deram um telefonema no dia de hoje ou então para aquela que esperou por algum deles, numa grande mesa onde a decadente instituição família se reuniu. Não, não pergunte, seria covardia.

Como semear leituras ?

Tirei estas fotos no interior de Portugal.

Era uma cidade qualquer num lugar aleatório,

poderia ter sido apenas uma cidade bonita numa  foto,

mas lá estava este furgão,

com uma proposta de encantar corações.

Semeando leituras. Sonho ? Realidade ?

Não parei para perguntar, para saber mais.

Estava só de passagem, voltando para Lisboa

e depois ao Brasil.

Trouxe de lá esta foto-semente,

este desejo.

Festival Literário de São João del Rey

O 4o. Festival de Literatura de São João del Rey, acontecerá entre os dias 26 e 28 de novembro. A homenageada é Ana Maria Machado. Para saber a programação visite o site da Felit ou o blog  estilingues.wordpress.com

Três autores do projeto Estilingues, Alexandre Brandão, Sônia Peçanha e Vânia Osório, darão oficina no dia 27.