silencio

recolho os pratos

os versos

as armas

qualquer atitude agora

seria um furacão

máquina de torcer sentidos

faca afiada

moedor de sonhos

.

silencio

o amor que ainda resta

o ódio que brota

a vontade de virar a mesa

e fujo para uma praia distante

onde possa uivar como animal ferido

.

engulo os fatos

embrulho o estômago

e os retalhos daquilo que seria muito

saio sem estardalhaço

sem ilusões

avanço pelos dias

até ganhar distância

de mãos atadas

você desce as escadas, eu conto os degraus

em algum momento visitamos teus/meus porões

queria te encontrar no caminho e perguntar

se são movediços os teus medos

se no fim dos degraus é o precipício

queria conversar sobre abismos

mas não nos vemos

o que não surpreende

há tanto já não damos as mãos

mesmo nos velhos retratos, repare

parecíamos felizes, mas era só fotografia

mesmo sorrindo cada um olhava

para um horizonte diferente

opostos campos e armadilhas

passando

.

Não convém se aproximar

prolongar esse momento

ou me dar seu telefone

é tarde e nem sei seu nome

você sabia que há muitos anos

isso era um charque?

ninguém por aqui passava

e veja só

agora estamos a caminhar

passos tranquilos e firmes

nessa calçada de pedras

.

logo a frente tem um ponto de taxi

você pega um carro

sigo a pé

e jamais saberemos se teria dado certo

se teríamos feito alguma viagem

arriscado mais uma vez

melhor assim

.

piso nas pedras sem pressa

e penso que um dia

tudo isso já foi

um charque um pântano

muito antes

homens pré-históricos

enfrentaram seres imensos

há milhões e milhões de anos

e ainda antes

nada

DIáRIO

Os dias se enfileiram

Como soldados sem graça

E sem sentido

Nas paradas da independência

Ela mesma algo controversa

.

Tentar espairecer

Tomar um remédio

Uma água de coco

Sossegar num lugar ao sol

E esperar que passe

.

Acordar com alguma dor

E nem saber exatamente onde

Ou o que anuncia

Para além da velhice

Da noite mal dormida

Das passadas presentes e futuras

Horas enfrentando

A luz fria do computador

sempre um susto

.

Um avião passou rasante

cheguei a imaginar

um homem de óculos e uma jovem bonita

olhando ávidos ou amedrontados pela janela

.

partir é sempre um susto

.

em seguida uma moto

e seu motorista encapuzado

motor sem escapamento

jaqueta de couro em alta velocidade

ensurdeceram os pássaros já tão raros

.

segui pela beira da praia

tirei os sapatos para sentir melhor

a areia e as águas macias

pés descalços são um jeito bom de chorar

cantarolei … baby, baby, eu sei que é assim…

.

9 de novembro de 2022 – em homenagem a Gal Costa

me contaram…

Você passou lá em casa eu soube

Deve ter esquecido algo

Uma camisa um livro

Ou o próprio esquecimento

.

Às vezes voltamos

Sem perceber ao lugar que era um hábito

Nem bom nem mal

Só algo que sempre se repetia

.

Você passou e eu fiquei imaginando

Seu carro estacionado debaixo da árvore

Que segue lá firme e concreta

Como gente não pode nem deve ser

.

Você passou e eu não vi

Compenetrada que estou

Em trocar cortinas lençóis

Mudar o cheiro da casa

Desentranhar você

.

Já falamos um dia

Quando ainda falávamos e ouvíamos

Que somos feitos de amores

Os nossos e daqueles com quem dormimos

Somos feitos de sonhos

Dos nossos e dos que formamos pares

Parcerias quadrilhas

.

Sei que você entrou na casa

Procurou na geladeira uma cerveja

Na cama seu velho travesseiro

Na estante folheou um ou outro livro

Para saber o que ando lendo

.

Você ficou um tempo aqui

O suficiente exato para deixar seu cheiro

Que tento eliminar

Com janelas abertas e bom ar

.

No banheiro ficou um odor que é só seu

Diferente do meu e de tantos outros

Somos animais mamíferos

Apesar de fingirmos ser etéreos

Cheiramos a mijo e comemos carne

.

Você passou lá

Me contaram ou inventei

Não importa

Esse lá não existe mais

Tudo pode parecer ser o mesmo

Mas a nossa casa não mais

.

Eu mesma volto todos os dias

E constato que os mesmos móveis

As mesmas poltronas e sofá

Não são mais

.

Você passou lá entrou na casa

No mesmo dia e instante

Em que também entrei

Mas a casa é outra

.

Somos outros

Nem mais felizes ou tristes

Só outros

E incomunicáveis

sem palavras

Eu poderia requentar palavras doces

Ou dizer coisas que arranham

Apenas para me fazer presente

.

Mas pensando bem

Não há razão

As palavras são afiadas

E ficam perfurando depois

.

Escolho não mexer

No lado do peito onde guardei

Uma caixa oblíqua de memórias

.

Por isso apenas sorrio

Conto até cem e saio

Como quem entrou por engano

Luto animal

No dia em que o marido partiu

Ela levou o cão ao veterinário

Acreditando que de tão apegado

Adoeceria

O veterinário o examinou

Receitou vermífugo e vitaminas

– Não seria prudente um tranquilizante? –

Ela disse, quase implorando

– por conta da ausência, o senhor entende?

Ele, pouco dado a sentimentalismos, disse apenas

Que não tratava de humanos

.

Ela voltou para casa

Chamou-o pelo nome do marido

E deixou, pela primeira vez,

Que dormisse no quarto bem junto a sua cama

Logo ela, que sempre impôs distâncias