Luto animal

No dia em que o marido partiu

Ela levou o cão ao veterinário

Acreditando que de tão apegado

Adoeceria

O veterinário o examinou

Receitou vermífugo e vitaminas

– Não seria prudente um tranquilizante? –

Ela disse, quase implorando

– por conta da ausência, o senhor entende?

Ele, pouco dado a sentimentalismos, disse apenas

Que não tratava de humanos

.

Ela voltou para casa

Chamou-o pelo nome do marido

E deixou, pela primeira vez,

Que dormisse no quarto bem junto a sua cama

Logo ela, que sempre impôs distâncias

Investigando

Não há nada sobre nós

Nenhum vestígio

.

De tudo se é que houve tudo

Não sobrou nada

.

Uma cidade que submergiu

Ou virou pó num terremoto

.

Melhor assim

Sem histórias para levar

.

Pesadelos ou sonhos

Nem mortos ou vivos

.

Nada a esconder no vão em que repousam

Os anjos que não vingaram

navegar

mar.

sei de você detalhes

assimilados de súbito

sem muitos preâmbulos

ou divagações

.

do longe que se impôs

observo dias mais longos

porque noites vazias

e ainda assim pouco sei

.

sentir é mais que saber

embora quase sempre

seja necessário nomear

.

mas andava sem palavras

e o abraço funcionou como senha

para que nosso barco ainda em esboço

se atirasse ao mar

ontem

DSC09971.JPG

.

ontem te vi passar
nevava muito em Nova York
às seis da tarde já escuro
eu nem estava lá
você tampouco

.

seu sobretudo azul
cheio de gomos brancos
pensei te convidar
pra fazermos um boneco de neve

.

então sorrimos e nos abraçamos
mas isso foi ontem em Nova York
onde nunca houve
eu e você

cultivar

Tenho questões pendentes

que me esforço por resolver

embora duvide do valor do que se faz

da dor que nada traduz

da espera nos pontos de ônibus

 

Tenho reunido impressões

em fotos em abraços em branco

guardado amores em rascunhos

apostado em noites sem lua

em corpos sem rosto

em rostos sem amargura

 

Tenho feito de tudo um pouco

e pouco me ajudam os mapas

as viagens de qualquer espécie

e os dicionários de antônimos

 

Mas me esforço para sorrir

bilhar junto aos primeiros raios de sol

e embarcar em sonhos e planos

às vezes em alto mar

outras em voos rasantes 

 

Viajo em rios caudalosos

em braços feitos cipó

um dia maremoto outro túnel do tempo

outro ainda lições de silêncio

ou um amor que dura infinito momento

sem tempo sem muros

semente

concerto solo

by desenharts (tumblr)

por hoje basta

o morto na rua

o beato na praça

amor e mordaças

a massa de tomate

no bigode e as moscas

caindo num prato

de fundo tédio

por hoje ficamos assim

ficando

eu me acompanho em concerto

pra solidão sem orquestra

amanhã

é uma outra fresta

querer

Abrir a janela pro sol

e vislumbrar uma gorda manhã

atravessar o pomar das questões difíceis

a horta das mínimas coisas

sorrir pras crianças na porta da escola

e seguir sem pressa

.

Queria muito

você na varanda esperando por mim

dizendo que voltou

e que veio pra durar

um tempo de poemas e colheitas

possível

Eu penso em você

Pulando poças d’água

Escorregando na lama

Há cerca de mil anos

Acho que nos amamos

E era só um olhar pro outro

Pra tudo saber

 

Desenhar azuis era um hobbie

Fazer amor –  uma forma a mais

De abrir portas e viajar no espaço

 

Lembro das palavras absurdas

Do abraço encantado

Dos seus passos no escuro

Do sono tranquilo

Se permanecias comigo

A noite inteira

 

Do que falávamos ?

Nem sei, nossa relação tinha cheiro

Tinha melodia e letra

Quantas vezes fomos ao céu

Um do outro e mais além ?

 

Agora acordo nessa cama

Larga e vazia

Não é bom, nem fácil

Mas sei que amar é um mistério

possível

liquidificador

by Sven Fennema (Asylum Art)

esse caracol se enreda

brincando de trocadilhos

troca trilhos pinta o teto de anil

às vezes se enrosca em meu pescoço

se esconde entre versos

invade minha noite e pensamentos

destampa sorrisos

segreda promessas

.

Vive em aparente calma

mas em situações de perigo se encasula

ou se camufla

algumas vezes de gente

com olhos boca e dentes

já me convenceu certa época

de sua natureza humana

.

Mas caracol, por princípio e filosofia (eu acho)

sai pouco de casa

e muito desconfia

ao primeiro sinal de perigo

que pode ser um pingo de chuva

ou uma palavra com conotações mercantilistas

ou ainda uma centopeia (a palavra ou ela mesma)

se encaracola

encaramuja

come doces e cospe celulares

.

Misturando tudo

o que houve

o que ouviu ou não

uma planta comestível

um olhar

alguma verdade

uma frase pêndulo

um olhar fundo

uma casa

uma ou outra tolice

um sonho destecido

.

Tudo isso e tudo o mais

num hiper mega

liquidifica   dor

liquidifica  mor