frágil

às vezes você quer me ver e não consegue

ainda que eu esteja bem diante do seu nariz

é que qualquer barulho me assusta

e muitas vezes me ausento

deixo o corpo presente

(como os mortos fazem tão bem)

e mergulho em mim

vou tão fundo que escapo

e o caminho de volta

é uma linha frágil que liga

o Tempo ao tempo

aqui

ali

cárcere privado

.

parto com minha insólita bagagem:

você que preciso enterrar

a passagem só de ida

me desvencilhando deste fardo

não precisarei voltar

abro a cortina dos dias

depois de tanto tempo

presa a sua loucura

foragida de mim

difícil distinguir

o que é fato do que é medo

ainda assim me esforço

estilhaço o espelho que nos assemelha

 me desenlaço desenredo desinvento

e recomeço

cotidianamente

faço como aquela chinesa

que sai todos os dias

pequenos passos  

sem falar ou sorrir

saudades do outro mundo?

.

vago pelas ruas

da cidade pequena

que se esconde na grande cidade

e na areia fina

de uma praia simbólica

.

a passos miúdos

costuro palavras-pensamento

enquanto procuro

meu sapato de salto

que afundou na lama

de um anteontem qualquer

me atraso

agarrada aos contos de fada

que aliviavam a solidão da infância

e imito a chinesa

que volta ao fim da tarde

.

retira sua pele branca

sua fala não dita

seus pezinhos macios

abre a porta ou a página

e parte para dentro do fora

ou para agora nunca mais

garoa





 
 insistentes
 as gotas escorrem 
 entre os dedos das folhas
 esparramam-se pelo chão 
 brincam no balanço quebrado
 enchem o velho cocho
  
 pequenas e firmes
 como pensamentos obsessivos
 translúcidas e brilhantes
 descem paralelas e perfeitas
  
 eu as observo
 enquanto sorvo um chá
 me aquieto e espero
 que a chuva passe
 e o vento leve
 esses dias avessos 

game…over??

um dia, não lembro por que, minha filha disse que nossa geração (a minha, não a dela) gastou as utopias possíveis. como eu não a questionasse deu por encerrada a conversa e voltou para o game.

deixei-a envolvida com habitantes de uma cidade futurística e sombria. saí e fui ver o mar. crianças brincavam na areia e pescadores chegavam com iscas, cestos e molinetes. assisti ao pôr do sol e mergulhei em mim pensando no tempo e tentando entender a distância entre tantas coisas.

não podia imaginar, naquela época, que nos transformaríamos em personagens de um jogo sinistro, enfrentando, sem estratégias ou armas, um inimigo invisível e onipresente, enquanto um bando de loucos brinca de dirigir o país para o abismo.

brecha

a porta estava aberta

entrei sem querer

querendo

não sei bem sobre o que falamos

se é que falamos

se disse sim 

disse não

quando acordei

o sol debruçado na cama

coloria nossos corpos 

entre lençóis e sonhos

amarfanhados

abri a janela 

e ela me ofereceu 

um céu azul

de praias distantes

e outras tantas

portas

em algum lugar um cão

em algum lugar

Um cachorro late. Pode estar preso ou ter medo do escuro. A casa sem luz e sem sustos. Presto atenção ao arranhar no telhado, pode ser de um morcego, pássaro ou o vento abrindo passagem entre as frestas que o tempo vinca nas paredes. Pode ser também uma lembrança, mas prefiro esquecer. Tudo é quase jeito de fingir não ser. E como não dou atenção aos ruídos eles cessam. Então resta só o cachorro arrastando seu latido pela noite.

O cão para de latir e não sobra nada. Vazio e silêncio se beijam e não há como intervir ou modificar este estado de coisas. Só observar o nada, tocar e ser tocado por nada. Prender a respiração. Quase implorar ao cão preso em alguma brecha entre a porteira e a escuridão que volte a latir.

Mas se a boca da noite fez dele um vigia desejante de outros abismos só me resta gritar. E voltar a respirar.