me contaram…
Você passou lá em casa eu soube
Deve ter esquecido algo
Uma camisa um livro
Ou o próprio esquecimento
.
Às vezes voltamos
Sem perceber ao lugar que era um hábito
Nem bom nem mal
Só algo que sempre se repetia
.
Você passou e eu fiquei imaginando
Seu carro estacionado debaixo da árvore
Que segue lá firme e concreta
Como gente não pode nem deve ser
.
Você passou e eu não vi
Compenetrada que estou
Em trocar cortinas lençóis
Mudar o cheiro da casa
Desentranhar você
.
Já falamos um dia
Quando ainda falávamos e ouvíamos
Que somos feitos de amores
Os nossos e daqueles com quem dormimos
Somos feitos de sonhos
Dos nossos e dos que formamos pares
Parcerias quadrilhas
.
Sei que você entrou na casa
Procurou na geladeira uma cerveja
Na cama seu velho travesseiro
Na estante folheou um ou outro livro
Para saber o que ando lendo
.
Você ficou um tempo aqui
O suficiente exato para deixar seu cheiro
Que tento eliminar
Com janelas abertas e bom ar
.
No banheiro ficou um odor que é só seu
Diferente do meu e de tantos outros
Somos animais mamíferos
Apesar de fingirmos ser etéreos
Cheiramos a mijo e comemos carne
.
Você passou lá
Me contaram ou inventei
Não importa
Esse lá não existe mais
Tudo pode parecer ser o mesmo
Mas a nossa casa não mais
.
Eu mesma volto todos os dias
E constato que os mesmos móveis
As mesmas poltronas e sofá
Não são mais
.
Você passou lá entrou na casa
No mesmo dia e instante
Em que também entrei
Mas a casa é outra
.
Somos outros
Nem mais felizes ou tristes
Só outros
E incomunicáveis
sem palavras
Eu poderia requentar palavras doces
Ou dizer coisas que arranham
Apenas para me fazer presente
.
Mas pensando bem
Não há razão
As palavras são afiadas
E ficam perfurando depois
.
Escolho não mexer
No lado do peito onde guardei
Uma caixa oblíqua de memórias
.
Por isso apenas sorrio
Conto até cem e saio
Como quem entrou por engano
Luto animal
No dia em que o marido partiu
Ela levou o cão ao veterinário
Acreditando que de tão apegado
Adoeceria
O veterinário o examinou
Receitou vermífugo e vitaminas
– Não seria prudente um tranquilizante? –
Ela disse, quase implorando
– por conta da ausência, o senhor entende?
Ele, pouco dado a sentimentalismos, disse apenas
Que não tratava de humanos
.
Ela voltou para casa
Chamou-o pelo nome do marido
E deixou, pela primeira vez,
Que dormisse no quarto bem junto a sua cama
Logo ela, que sempre impôs distâncias
Dá pra fazer silêncio aí?
É cedo, mas vou dormir, apagar a mente após virar e desvirar notícias, crimes, guerras, horrores. É fácil para mim dormir (mesmo que de fato não seja), as bombas estão explodindo longe, tenho comida na geladeira e não falta água, nem chove muito e mesmo que chovesse, não moro na beira de um barranco ou rio.
É cedo e poderia sair, ir as ruas cheias de gente sem máscara, beber e rir, mas me pergunto de quê. Fazer exercício numa academia com ar-condicionado gelando os ossos e música atropelando os sentidos. Ou caminhar na praia, mesmo que olhando para os lados e sem usar relógio, celular ou tênis caro. Isso. Poderia sair, ainda que com medo. Mas isso é tão pouco, tão ínfimo que dá vergonha sentir esse medo e essa aflição comparado ao que se passa lá fora.
É cedo e vou dormir, carrego comigo um pouco de vergonha desse nosso país sem memória ou caráter, um monte de notícias para separar o que de fato é ou o que é invenção, e sendo invenção o que é para desconsertar, o que é para incitar, sei lá. Separar joio do trigo… ainda mais agora que o trigo está tão caro ou separar palha de arroz e cevada do grão de café, já que o café puro é para exportação. São tantos assuntos, tantas palavras.
Vou dormir e não tentar entender como alguém espanca até a morte um outro por nada, como gente se arrisca a morrer na fronteira do México em busca de um sonho. Ou ver notícias e filmes de gente que pode ir para onde quiser com seus vistos gold, cheios de ouro para garantir a vida em qualquer lugar do mundo ou mesmo em outro planeta.
É cedo, pode ser que amanhã seja apenas um dia a mais com bombas concentradas na Ucrânia, extermínios aqui e ali. Pode ser. E isso nos garante mais um dia. Vou dormir cedo e se amanhã ainda houver amanhã, espero que possa haver um acordo, um mínimo de humanidade no coração de todos. É cedo e vou tentar apagar a mente, desligar e aguardar passiva e impotente que decidam apertar o botão e terminar com tudo ou seguir assim, matando pelas beiradas.
Quero dormir, já fechei tudo, nenhum ruído de fora.
Mas esse falatório… não para.
Ei!
Dá pra fazer silêncio aqui?
algum alento na imensidão
Admiro as estrelas
A viagem cadente
Os pedidos feitos
Tantos por serem tantas as estrelas
Aos olhos de quem tem um céu limpo
Para contemplar
.
Quantos anos se passaram
Desde que por tanto admirar o céu
Me percebi mínimo grão?
.
Essa sensação de tudo olhar
Sob tantos ângulos
Como estivesse em milhares de janelas
E em lugar algum
.
Essa gota de esperança
Que surge de repente
No orvalho da noite
No mais fundo abraço
Num sentimento limpo e simples
De querer bem
E quem quiser…
Cansei de fingir felicidade
Usar proparoxítonas e saltos altos
Quem quiser me ver
Terá que atravessar a esquina
Desviar disso e daquilo
Tropeçar na dor
Cair na real sem anestesia
E comigo tatear o escuro
Grafitar muros
E (não) pedir socorro
desigualdade
A chuva insiste
E se para mim ela é só ruído
Para muitos é alto risco
Esquecimento
Lembro do cheiro
Da voz
Do toque
Mas já não sei
De quem