
garoa

insistentes as gotas escorrem entre os dedos das folhas esparramam-se pelo chão brincam no balanço quebrado enchem o velho cocho pequenas e firmes como pensamentos obsessivos translúcidas e brilhantes descem paralelas e perfeitas eu as observo enquanto sorvo um chá me aquieto e espero que a chuva passe e o vento leve esses dias avessos
game…over??

um dia, não lembro por que, minha filha disse que nossa geração (a minha, não a dela) gastou as utopias possíveis. como eu não a questionasse deu por encerrada a conversa e voltou para o game.
deixei-a envolvida com habitantes de uma cidade futurística e sombria. saí e fui ver o mar. crianças brincavam na areia e pescadores chegavam com iscas, cestos e molinetes. assisti ao pôr do sol e mergulhei em mim pensando no tempo e tentando entender a distância entre tantas coisas.
não podia imaginar, naquela época, que nos transformaríamos em personagens de um jogo sinistro, enfrentando, sem estratégias ou armas, um inimigo invisível e onipresente, enquanto um bando de loucos brinca de dirigir o país para o abismo.
brecha

a porta estava aberta
entrei sem querer
querendo
não sei bem sobre o que falamos
se é que falamos
se disse sim
disse não
quando acordei
o sol debruçado na cama
coloria nossos corpos
entre lençóis e sonhos
amarfanhados
abri a janela
e ela me ofereceu
um céu azul
de praias distantes
e outras tantas
portas
descompasso
Se passo o tempo e ele não passa, amasso o pão que ainda não comprei e sinto o perfume das flores em jardins alheios é surto ou mera distração? Sei que não sei e ainda assim insisto, quase creio, por teimosia talvez, ainda que degastada, numa solução não fanático-partidária, mas não há mais espaço para a inocência de acreditar em governos e saídas. O fim do mundo não tem saída, talvez sequer fim.
Indago o mar sobre o que se passa no horizonte e ele responde em ondas, assim como eu ou você quando indagados sobre nossos destinos, seguimos na mesma pista às vezes sem acostamento, ainda que algum oráculo nos fale por símbolos ou parábolas que caminhos são puro risco, com grandes chances de a nada levar e, ainda que necessários, não adiam a morte se, na agenda dela, você estiver marcado com X.
Reflito sobre o dia D, a solução que não chega, o sonho que já nem lembro. Saio para espairecer num ar quente de dezembro, sem brisa sombra ou alento, conheço de cor a cor suja do meus tênis, a vegetação rala, a maresia, o calor úmido que cola no corpo e se mistura com sensações de tédio ou desespero. A areia é fina, o mar imenso e o mundo segue desabando.
e-smile
no calendário se passaram
quinze dias semanas meses
as portas não batem
o elevador raramente range tudo é quase
máscaras tornaram-se item obrigatório de vestuário
nas poucas vezes que vamos ao front
precisamos estar alertas
tomar cuidado com sutilezas
sem sorrisos algumas frases se afiam e ferem
teremos de mudar o modo de falar
colocar legendas nas brincadeiras
usar emotion icons como nas mensagens
.
novos manuais de comunicação
serão criados e vendidos em todo lugar
treinamentos on line de como se exprimir sem sorrir
ser afetuoso sem abraços
contornar esse estranho momento
sobreviver nesses quinze dias medos semanas
interrogações meses distâncias anos…
mutantes
passo dias imaginando atos de coragem e rebeldia
dividindo as noites entre momentos de insônia e Netflix
noticiários fazem das mortes placares de jogos um recorde após o outro
há presságios no céu mais límpido
gritos brotam avulsos agredindo o silêncio desse inabitual frio de inverno
e nem chegamos a junho
sempre fomos tropicais alegres e desejantes
agora não sei para onde vamos entre tantas guerras particulares
que invadem nosso espaço já tão cerceado
ficamos à deriva perdemos as certezas que fingíamos ter
e aproveitando o confinamento quase obrigatório
reforçamos nossas tocas estocamos mantimentos
e nos adaptamos às trincheiras
presságio
um livro se tecendo
de entranhas e vertigens
abarrotado de enigmas
ainda indecifráveis
tempo comendo tempo
fio puxando fio
abrindo feridas
cicatrizando outras
uma história e seu enredo
uma vida e seu epílogo
um trago uma arma
um pouco de sopa
outro tanto de sorte
o dorso nu do personagem
a embriaguez das primeiras falas
um livro se tramando
brotando de dias sem sol
de janelas entreabertas
a dura saga do protagonista
a odisseia do escritor