Lembro do cheiro
Da voz
Do toque
Mas já não sei
De quem
Lembro do cheiro
Da voz
Do toque
Mas já não sei
De quem
No Sul
As mortes
Que acontecem no Norte
São meras estatísticas
Te encontrarei depois
Do ontem que levou
Muitos abraços e sorrisos
Te encontrarei no antes
De um amanhã que talvez chegue
Quase livre de tantos mortos
Quase esquecido dessa sombra
Que tomou os dias as horas
Essa epidemia quase uma ficção
Se não fosse real
Com seus caixões
Não cheios de pedra
Como dizem os boçais
Mas cheios de sonhos partidos
Amores sustados
E um cortejo de órfãos
Órfãos de pais e de filhos
De um país que caminha
Frio e pretensioso
Para o abismo
.
Te encontrarei em algum bar
Noite ou fim de semana
Passearemos em algum parque
Praia ou montanha
Sem dizer nada
Que é a conversa possível
No antes do depois
Não há nada sobre nós
Nenhum vestígio
.
De tudo se é que houve tudo
Não sobrou nada
.
Uma cidade que submergiu
Ou virou pó num terremoto
.
Melhor assim
Sem histórias para levar
.
Pesadelos ou sonhos
Nem mortos ou vivos
.
Nada a esconder no vão em que repousam
Os anjos que não vingaram
Jamais empreste suas asas
Desafi(n)ando
Vieram as fiandeiras
Com seus grandes mantos
A cantar mandingas
Atropelaram o século XXI
Com crucifixos e velhas espadas
Seitas e perseguições medievais
Tudo isso revelado instantaneamente
Nas redes sociais
Tudo colorido e frio
Como num disputado game
Onde cabem fotomontagens
Crimes ortográficos
E atentados à toda lógica
Fora das redes
Entre as grades da miséria
E jogos de guerra
Jorra sangue de verdade
às vezes você quer me ver e não consegue
ainda que eu esteja bem diante do seu nariz
é que qualquer barulho me assusta
e muitas vezes me ausento
deixo o corpo presente
(como os mortos fazem tão bem)
e mergulho em mim
vou tão fundo que escapo
e o caminho de volta
é uma linha frágil que liga
o Tempo ao tempo
aqui
ali
lá
.
parto com minha insólita bagagem:
você que preciso enterrar
a passagem só de ida
me desvencilhando deste fardo
não precisarei voltar
abro a cortina dos dias
depois de tanto tempo
presa a sua loucura
foragida de mim
difícil distinguir
o que é fato do que é medo
ainda assim me esforço
estilhaço o espelho que nos assemelha
me desenlaço desenredo desinvento
e recomeço
faço como aquela chinesa
que sai todos os dias
pequenos passos
sem falar ou sorrir
saudades do outro mundo?
.
vago pelas ruas
da cidade pequena
que se esconde na grande cidade
e na areia fina
de uma praia simbólica
.
a passos miúdos
costuro palavras-pensamento
enquanto procuro
meu sapato de salto
que afundou na lama
de um anteontem qualquer
me atraso
agarrada aos contos de fada
que aliviavam a solidão da infância
e imito a chinesa
que volta ao fim da tarde
.
retira sua pele branca
sua fala não dita
seus pezinhos macios
abre a porta ou a página
e parte para dentro do fora
ou para agora nunca mais