provisórios

Abri o ventilador em busca de ar, respingaram múltiplas vozes que soaram como tapas, alertas, condenações. Arrastei-me até a sala catando as balas perdidas que encontrava. Guardo-as num grande pote de vidro como vi, há alguns anos, em salas de degustação, só que eram rolhas ao invés de balas. Mas isto ficou lá atrás. Aliás, lá atrás é um lugar que não existe, por que então seguimos nos agarrando a ele?

Balas guardadas, passei a colher migalhas, formigas escondiam-nas em buracos nos tacos de madeira fake. No calor elas sempre aparecem, quase invisíveis andam pela casa e pelo meu corpo, sem pudor.

Lembrei-me de que havia qualquer coisa no olhar daquele homem na esquina, estranhei, pois todo olhar de agora é destituído de expressão, na verdade evitamos qualquer contato.

Pensando nisso atravesso a manhã. A tarde lido com outras questões, conto o estoque de comida, o dinheiro que escondo no lustre onde uma lâmpada propositalmente queimada e manchas de mosquitos mortos protegem notas salvas das últimas enchentes.

Faço uma refeição ligeira. Durante a madrugada vigio o relógio e uma antiga goteira. Evito ultimamente abrir gavetas e mensagens. Leio livros de trás pra frente, entremeando um com outro e outro, em busca de sentido.

Meu tataravô me visita às vezes, ele pode, não tem medo de contágio. Me convida para ir ao parque, não sei a que parque se refere. Pergunto o motivo dele seguir vagando por aqui e não ter ido lá para onde as coisas não são matéria. Ele ri, diz que isso é invenção, como também o céu e a terra. Não gosto de discutir com ele, seus argumentos são sempre mais fortes e absurdos que os meus.

Aceito ir ao parque, combinamos de fazer isto daqui a 3 semanas. Conversamos longamente sobre o tempo necessário para que tudo acabe, se resolva, me corrijo.  Fechamos a data para o último dia do próximo mês. São números que boiam entre noticiários e estatísticas. Faço as contas, concluo que não são 3 mas cinco as tais semanas cabalísticas.

Terei tempo de traçar meu plano de fuga, penso. Ele, que não precisa de nada disto, salta pela janela com seu sorriso de poucos dentes. Desnecessários. Poderia não ter vindo, mas veio. Fico contente.

19/3/2020

em algum lugar um cão

em algum lugar

Um cachorro late. Pode estar preso ou ter medo do escuro. A casa sem luz e sem sustos. Presto atenção ao arranhar no telhado, pode ser de um morcego, pássaro ou o vento abrindo passagem entre as frestas que o tempo vinca nas paredes. Pode ser também uma lembrança, mas prefiro esquecer. Tudo é quase jeito de fingir não ser. E como não dou atenção aos ruídos eles cessam. Então resta só o cachorro arrastando seu latido pela noite.

O cão para de latir e não sobra nada. Vazio e silêncio se beijam e não há como intervir ou modificar este estado de coisas. Só observar o nada, tocar e ser tocado por nada. Prender a respiração. Quase implorar ao cão preso em alguma brecha entre a porteira e a escuridão que volte a latir.

Mas se a boca da noite fez dele um vigia desejante de outros abismos só me resta gritar. E voltar a respirar.

Chamado

Todas as noites o velho e quase inútil orelhão toca, quem hoje ainda se utiliza de um? Há celulares por todos os lados, roubados e revendidos quase ao mesmo tempo, outros ainda parcelados em cartões de crédito a perder de vista. Quem ainda sai de casa para usar um deles? Para que servem agora? Um lugar para se abrigar momentaneamente da chuva, ler propagandas indecentes, servir de poste para bêbados ou cães.

Fora do tempo, no vazio da noite, ele toca, uma, duas, dez vezes. Unilateralmente, sem objeto, ele chama. Quem liga a esta hora e por que? Quer falar com quem se é um telefone público, próprio para efetuar ligações, não para receber. Número sem endereço na lista, também ela em desuso.

Ainda assim, ou por isso, ele toca. No silêncio da madrugada se transforma em um grito, uma ferida. Ninguém vai lá para saber quem liga, o que deseja. Será que, de tão desesperado, liga por costume, por nada? Será que teme que a solidão devore os que o ouvem, mas não sabem mais como sair de si mesmos?

Ensaio ir até lá. Talvez ainda uma chance. Derrubar estas paredes, arrombar a porta, descer pelas escadas e dizer: Sim?

uma gata, uma broa

in-dissoluvel (tumblr)
(in-dissoluvel – tumblr)

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ao acordar naquela manhã espreguiçou para todos os lados
abriu os dedos dos pés, das mãos, ao máximo, sentiu a umidade do ar,
pressentiu o vento que ainda era só sugestão, chamou por Elena
que se manteve distante, soberana de seu lugar na janela,
sabedora de coisas que ninguém mais vê.

mexeu os dedos dos pés, não todos, alguns, mesmo com grande esforço,
parecem avessos a qualquer comando, como acontece, às vezes, com o coração,
mas não pensou nisso, na verdade tem praticado um misto de alegria e vazio,
mansidão e poesia, inspira-se eventualmente em Elena, no que acha que se
passa na sua cabeça felina, atenta e distante ao mesmo tempo. espelha-se
nela e jura não querer mais se enredar em paixões, enveredar por contas que
nunca fecham.

ao acordar percebeu que não era tão cedo, o frescor da madrugada já tinha
partido, havia uma ligeira brisa, um ar pesado e úmido, prenunciando vento,
talvez chuva. espreguiçou e moveu todo o corpo, exceto alguns dedos que
parecem ter uma existência própria e inerte, afastada de tudo o mais e
talvez sem significado, levantou e fez um café forte com gengibre. Elena
seguia empoleirada na janela, lambia as patas e voltava ao seu nada habitual.
um jeito nada de ser, pensou, invejando-a um pouquinho.

gostava de acreditar que Elena filosofava sobre coisas como ser ou não ser
gata doméstica, algumas vezes desaparecia por dias, sabia da possibilidade
de um dia ela optar por seguir outros destinos, pular num quintal, avaliar
que a vida em janelas é muito restrita, que prefere saltar por aí.

sentiria falta, claro, do mistério de ser de Elena, mas ainda assim
espreguiçaria pela manhã, faria café, manteria sua pequena horta livre de
mato, aguardaria com o coração leve os primeiros dias da primavera, a hora
de colher o brócolis, o alho poró, o tempo das jabuticabas.

ao acordar naquela manhã não percebeu nada diferente, a não ser o ligeiro
vento insinuando uma possível chuva, apenas levantou como sempre e seguiu
a agenda inscrita na pele dos dias.

estava lá, em algum lugar, o desejo de fazer pão. juntou os ingredientes,
limpou a bancada, abriu a janela onde Elena já não estava, abriu a porta por
onde Pingo entrou abanando o rabo de felicidade. Tão diversos: Elena e Pingo.

juntou a farinha, a água, o fermento, misturou aos poucos, brincando com as
formas que iam surgindo, virando, batendo, procurando a textura, o ponto,
o corpo ajudando o movimento das mãos. em seguida deixou a massa no canto,
coberta com um ligeiro pano. ela iria descansar e crescer.

ter como destino ser uma broa, um pão. Pingo se sabia cachorro ?. Elena sabia
sua natureza arredia, mesmo que fosse só por instinto. e ela, o que sabia
de si ? que no dia seguinte espreguiçaria e faria café e cuidaria das plantas
e zelaria pelo dia até que fosse novamente hora de dormir. E se um dia foi
como a massa que ao descansar cresce, já não era.

Há muito tempo permanecia do mesmo tamanho.

sépia

image by in-dissoluvel (tumblr)

Eu o encontrei por acaso, no álbum de um amigo no facebook. Amigo, não exatamente, conhecido. Estava sem ter o que fazer, o tédio invadindo a sala, fugi para o escritório e sentei diante do laptop. Que permanecia em dormente latência há não sei quantos dias.

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Entrei, o facebook logo na primeira página, programei isso alguma vez, não sei bem porquê. Naveguei distraidamente por várias mensagens. Havia uma desse quase amigo. Uma foto com algumas pessoas em festa, um aniversário, talvez. Fui passando as fotos, tão fácil como entediante. Só clicando na seta do lado direito. Passei rápido, voltei. Fui a frente, voltei. Quem, quem ? Será … Será ?

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Repeti várias vezes esta operação, dei zoom e distorci tudo. Voltei. Arrastei a foto para o Picasa, ampliei, quem, quem… será ? Copiei para o photoshop pirata que deixei de usar faz algum tempo. Ampliei, mudei, preto e branco, sépia. Lembranças. Em sépia o mundo é mais nostálgico. Em preto e branco difícil não se conectar ao passado. Tentei melhorar a imagem, talvez quisesse que ela voltasse no tempo, para aquele dia.Desisti.

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Passei para o pen drive. Bati na casa do Rafa. Me explico. Rafa é um amigo da geração 90. Nasceu com hora, minutos e segundos marcados em relógio digital. Antes do velocípede ganhou um vídeo game. Andou sem engatinhar. Escreveu seu nome via teclado antes de saber fazê-lo com papel e lápis. Entende de máquinas,  e já sonhou, remotamente, em casar-se com uma, num futuro absurdo para mim e para ele plenamente viável.

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Nos encontramos por acaso há algum tempo, no elevador que é o lugar mais perto da distância, e a distância mais próxima e incômoda possível do seu vizinho de porta, com quem você troca lacônicos bons dias, eventualmente um boa noite. No mundo classe média não falta açúcar na casa de ninguém, nem sal. Se faltar, um número na geladeira poderá salvar a situação: entregas vinte e quatro horas. Ninguém jamais baterá na sua porta durante o dia, muito menos a noite. A solidão pode arrastar os pés no cômodo ao lado a noite inteira, todos fingirão não notar. Ninguém surgirá na sua porta pedindo ajuda e você, por sua vez, talvez se enforque no lustre, mas sem acender a luz, para não incomodar.

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A única chance de faltar alguma coisa é na vigésima quinta hora. Nesta não há farmácia, restaurante ou motoboy de plantão. Foi nessa hora que nos encontramos uma vez. Em definitivo.

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Já nos tínhamos não encontrado diversas vezes no elevador ou no portão do prédio. Umas cinco ou seis vezes, ao menos, nestes últimos três ou quatro anos. Uma média alta, levando em consideração que, nestes anos, não cheguei a cruzar com mais da metade dos moradores. Talvez até nos tivéssemos não visto no calçadão, pois ele me contou certa vez que costuma sair antes do nascer do sol e esperá-lo na praia. Já fiz isso também em madrugadas de insone inquietude. Ainda assim não nos tínhamos visto.

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Mas tudo muda se acontece nessa hora extraordinária. Cheguei tarde nesse dia, muito. Acontecera algo que eu precisava esquecer, então varei a noite cruzando avenidas, ruas, ruelas, praças. Vaguei o suficiente para que o cansaço entorpecesse meu senso e me fizesse crer ter esquecido. Voltei, exausta, quase leve, precisando dormir.

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Também o Rafa, nessas coincidências nas quais os místicos não crêm, vivia a sua hora sem cronografia. Eu largara o carro numa praça ainda longe de casa, precisava respirar, olhar o mar, aguar. Ele vinha a pé de não sei onde. Devia vir de longe, tinha a roupa amarfanhada, os olhos vermelhos, os cabelos revoltos.

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No silêncio único dessa hora onde pouquíssimas pessoas transitam, ouvi passos. Ele também ouviu. Acabamos contando, eram quatro, diferenciados, num ritmo dois por dois, às vezes um outro ritmo, nervoso, sem rima. Dividimos compassos, cem passos, sem passos. Concentrados, dispersos.

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Entramos juntos no hall, o porteiro sonolento, o elevador a nossa espera. Nos vimos então pela primeira vez quando nos reconhecemos os donos dos passos diáfanos na madrugada. Comparsas de um segredo raro, de uma hora inexata.

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O elevador não saiu do lugar, não tínhamos dado partida. Marcamos, então, cada um, um andar, casual, improvável. Nem meu nem dele. Depois a lógica se fez presente. Apertamos os andares corretos e saímos, os dois, no meu. Ele me pediu a chave, eu ofereci a boca.

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Nos entregamos por que nessa hora que extravasa não há lugar para disfarces, nem explicações. Atravessamos o dia juntos, mudos, aturdidos com o tempo-hiato que nos unira. Esqueci completamente daquilo que queria esquecer. Os cabelos dele, eu penteei. Traçamos ali um projeto para nossa amizade. Brincamos com a sonoridade das palavras sem significado, com as sombras que projetamos nas paredes. Construímos e descontruímos.

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Agora, diante do passado preto e branco e da saudade sépia me arremesso ao andar debaixo com o passado na mão direita. Não sei e não me importa saber se há lugar para mim no dia comum do Rafael. Ele me recebe, alheio aos olhares da família que nos cobra bom senso e razoabilidade. Não somos, gostaria de dizer a todos, conjugamos verbos que nem existem, sonhamos com o implausível e sim, por que não, nos amamos na vigésima quinta hora de incertos dias.

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Mas agora estou aflita com o preto e branco, com o sépia, com a dor que irrompe do fundo de alguma represa esquecida. Mostro ao Rafa o pen drive. Ele me leva ao quarto, os olhares dos pais como fumaça, escurecem a nossa passagem, percebo, mas não ligo, envolta em densa neblina.

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Pacientemente abre o arquivo, recorta a foto, amplia, aumenta a nitidez, olha pra mim. Sabe pelo meu aniquilamento uma história que, por ser jovem, ainda viverá também. Todos um dia sofremos, digo a ele, quase como para justificar meu entorpecimento. Agradeço, peço desculpas pela invasão, pela hora. Ele dá de ombros, fica brincando com a foto que passou para seu computador. Colore, descolore, fragmenta, corta a cabeça de um, os pés do outro. Desfigura a imagem que me atormenta. A esfumaça. Captura aleatoriamente outras fotos, imagens de ninguém, numa tentativa de arrancar dos meus olhos a figura que me desintegra.

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Beijo seus cabelos agora organizados, fio sobre fio, cheiro de shampoo da Mônica. Ele sorri, usei o shampoo da minha irmã. É, ele tem uma irmã pequena, de um casamento posterior do pai ou da mãe. Cheira a bebê e curvado sobre o computador parece ter cem anos. Lembro que antes da porta que me levará ao meu próprio ninho existe uma família atordoada com a minha presença. Rafael publica no meu facebook palavras inventadas de um amor idem. Saio de olhos fechados, acreditando que se não olhar para eles não serei vista.

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No meu apartamento, no exato quarto sobre o dele, revejo o amor passado, o sépia do romance, o vermelho se tornando negro, o cinza que a tudo sucedeu. Os muitos anos e os exercícios de esquecer.

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A campainha não toca. Um ligeiro arranhar na porta, apenas. Atravesso o corredor. O meu velho e imponente relógio não anunciará essa hora. Começo a me acostumar com os dias inexatos, que saltam pedaços e avançam pela vigésima quinta hora.

Prelúdio

Chegou devagar e ficou me olhando até eu me voltar. Então perguntou se poderia ficar. Se não fizer barulho nem me incomodar. Ele ficou, no canto da sala, misturado aos móveis e algumas folhagens. Horas depois, preparando o jantar, lembrei-me dele. Aceita uma sopa ? Estava faminto, dei-lhe leite e pão. Sorriu. Ajudou-me a tirar a mesa e arrumou a cozinha enquanto tomei banho. Voltou para o sofá e esperou. Dei-lhe uma toalha e mostrei o banheiro. No sofá deixei uma blusa e roupa de cama. Pela manhã encontrei o café servido. Tomamos em silêncio, e alguns momentos pousava seus olhos mansos em mim.

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Uma noite acordei e ele estava sentado na beira da cama. Posso ficar aqui? perguntou apontando o lado vazio. Se não se mexer muito. Seu sono veio logo, tranquilo. Acordava sempre antes e deitava-se depois, mal percebia seus movimentos.

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Acostumei-me a ele como às plantas que enchiam a casa de perfume e cor. De seu, acabou trazendo poucas roupas e muitos discos. Posso colocar um? Desde que eu goste e não muito alto. Um som agradável envolveu a casa. Tem outra coisa: em dias nublados e de chuva fina gosto de ouvir Chopin. Não precisei mais abrir os olhos pra saber que chovia, a música inundando o quarto.

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Sempre gostei de ler, pediu-me que o fizesse em voz alta. Só poemas e quando cansar você continua, ele concordou. Romance. Líamos sentados no sofá, às vezes acompanhados por Schumann, outras por Bach, Haydn. Músicas cantadas só a noite, quando cansados dos livros ficávamos a sonhar.

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Um dia propôs passearmos. Onde houver muitas árvores, respondi. Caminhadas, ar puro, o sem-fim de verdes da floresta, as mãos dadas. Ganhávamos pouco a pouco a certeza um do outro e certos hábitos. Cinema às terças. Visitar o mar quando seus lhos perdiam a cor. Carne-seca e feijão-manteiga quinzenalmente, preparados por ele. Chopin em dias cinzas. Macarronada aos domingos. Assim íamos compondo os dias.

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Choveu sem parar toda a noite. Pela manhã Chopin trouxe o mais triste cinza que já vi. Acordei chorando infinitas coisas. Saudade, talvez, nem sei de quê. Tomei café sem encará-lo. Percebi que perdera o costume de sofrer. Pus-me a bordar iniciais num lenço. Ele me seguiu todo o dia, dividindo o silêncio. À noite, jantar findando, olhos fundos, está triste?, perguntou.  Fiz que sim.   Dói muito?  Dói, você não sente? Sinto você, posso te abraçar? Acenei, apenas, percebendo que dessa vez não tinha restrições a fazer. Dormimos assim e se não era a cura, aliviava bastante.

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Gostaria que conhecesse minha mãe, disse uma tarde. Fomos num fim de semana. A mãe e seus afazeres. Costurava e se ocupava de muitos gatos e pássaros. Em cativeiro só criamos tristezas, disse, como se desculpando pela confusão que os bichos faziam. Jantamos e fomos até a praça, sentamos num banco frente à linha férrea. O trem veio e partiu, voltamos para casa, onde a mãe já adormecera.

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Pela manhã acordei com a algazarra dos pássaros no quarto. Faltava-me seu abraço. Na cozinha o barulho dos grãos nas latas, ela catava arroz, ele feijão, compenetrados. Sentei-me.  Havia pão, manteiga, queijo e geleia sobre a mesa posta. Tomei café em silêncio e fui para junto deles. Um punhado de arroz deslizou em minha direção.

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Após o almoço fizemos pequena sesta. Pegaríamos o trem às três. Na estação a mãe me fitava, os mesmos olhos mansos do filho.   Abraçamo-nos. Só na cabine, o trem em movimento, lembrei-me de que não sabia seu nome.

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Voltamos aos nossos hábitos. Chopin tocou toda a semana. Lemos Fernando Pessoa. Iniciei um casaco de lã para ele, noites frias e tempestade. Numa madrugada iluminada por relâmpagos, despertei subitamente fugida de um pesadelo. Um enorme mal-estar se apossando de mim. Acordou preocupado, o que você tem? Meu corpo sacudia febre, o dele junto. Levantou-se, vou preparar alguma coisa. Fiquei no escuro, saudade da mãe e dele ali na cozinha. Antes eu não sabia que toda a vida procurei por eles. Voltou com compressas, chá e carinho. Depois apanhou o cobertor e me agasalhou. E disse um tanto apreensivo: talvez devêssemos, fazer amor, completei. Fomos, sem nome, quase cegos, mas sem nenhuma pressa, cientes do enorme tempo que levávamos para virar cada página.

Do livro A Palavra em Construção, coletânea, 1992