cenário

no meu calçadão

quando faz sol

há sempre o homem calvo

o ciclista paramentado

o gari cansado

e a jovem de cabelo azul

 

em dias nublados

além destes

aparece o senhor de bengala

com o garoto do velocípede

um bebê no carrinho

tudo assim igual igual

 

muito raramente

um novo personagem surge

e muda o rumo dos ventos

minha forma de andar

os horários do meu dia

o meu dia

último espetáculo

De um jeito ou outro iriamos nos revelar quando a cortina se abrisse desvendando a verdade e o engano. Poderia levar alguns anos mais, é verdade, sempre há formas de adiar. Fins são sempre doídos.
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Mas foi num dia qualquer, você agindo como sempre, não poderia supor, nem eu, já que fui a feira e comprei pimentões amarelos e vermelhos, tão mais caros que os verdes, só pra dar cor à nossa intimidade já um pouco pálida. É claro que me apercebi disso no depois de tudo.
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Ainda hoje não sei dizer se foram as cores vivas dos pimentões, o amarelo forte do açafrão no arroz, as cortinas da sala fechadas como numa peça que já terminou, o fato é que naquele jantar, apesar do vinho de guarda e das velas, tudo me pareceu prato feito que se come por pura obrigação.
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Em algum momento a chama da vela denunciou aquele lado ou sombra que você sempre esconde, o sorriso um tanto torto, o olhar que me deu medo. Quem seria você? E por que insistíamos nisso? Quem seria eu sem você?
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Caí em mim e soube também do seu tédio. Encenávamos há tanto aquela peça, as falas de sempre e de cor. Nem foi preciso muito esforço para desmontar o cenário e nos tirar de cartaz.

olhos de mar tardio

mando em cópia
um currículo pródigo
um número de telefone inventado
mudo de endereço sem avisar
e fujo pro entardecer perto do mar
é tão lindo que dói
suspende o fôlego
rasga certezas

um dia desses tudo isso vai acabar
talvez a paisagem nos perceba
como breves caminhantes
de um imenso cenário
nós – em rápidas pinceladas
vamos vivendo
o personagem que nos cabe

a tarde avança
e o mar segue
por terras distantes
olhos e sonhos
pousando numa linha
horizonte