coisas banais

diante dos últimos acontecimentos tenho poucas opções, ou muitas. o momento é importante, já nascendo histórico, talvez não convenha perder o mote ou amotinar-se ou ainda cair em si, envergar-se, avaliar percursos, varrer pra não sei onde as asas dos grandes voos.

me detenho diante da tela desses dias e cogito ir ao cinema ver um bom filme sobre qualquer coisa que não seja corrupção ou guerras, caminhar na areia sem arrastão ou policiais de bermuda, não ir as passeatas agendadas contra ou a favor, onde multidões se amontoam, apoiando isso ou aquilo enquanto as cartas dos baralhos se misturam e não sabemos mais quem é o rei de espadas, a rainha de copas, o louco ou o enforcado.  posso também tomar sorvete, estocar pipoca, ruminar sobre as razões que levam pessoas a querer mais e mais e mais, sem saber nem mesmo o quê.

independente e mesmo indiferente a tudo isso minhas unhas continuam a crescer, apesar de eu roê-las quase involuntariamente. não tenho barba, quem a possui deve ter uma preocupação a mais, em compensação problemas a menos no enfrentamento do dia-a-dia já que seu lugar ao sol  é mais seguro ou definido há muito mais tempo. talvez. entre o universo masculino e o feminino há um território de angústias. muitas semelhanças, distâncias, incompletudes, talvez. talvez. acho muito pertinente entremear esta palavra em todos os pronunciamentos,  avaliações, sentimentos, pressentimentos, opiniões. não é ficar em cima do muro, mas perceber que também ele é movediço.  

talvez é um exercício da fantasia. sendo uma andorinha ao menos uma vez experimentaria voar só, talvez fizesse outono assim. saltando de paraquedas esperaria o último instante para abrí-lo provando o sabor do risco e da possibilidade. se fosse um marinheiro desejaria morrer numa tempestade ou mergulhando fundo em mim. talvez. ou não.

pois pode muito bem um vento bom acariciar o rosto e brotar uma vontade de sorrir e abraçar pessoas. uma canção nova colorir um sonho antigo e dar coragem pra seguir viagem.

tocar o azulilás do entardecer, virar a página daquele velho romance, olhar o mundo de dentro de uma bolha de sabão pode não mais bastar. talvez.

a primavera na varanda dos dias, a vida que escoa na ampulheta de cada um de nós.

instantes (Plaza de Colón)

Colón – a praça

um pombo caminha

junto a minha sombra

quase sobre mim

como se eu não …  

paro

se levantasse os braços

e ele não me notasse?

saberia que …

nada de testes

aguardo uma retratação

uma exposição de fotos

uma expedição longínqua

para algum território

ou vazio

.

são muitas setas planos motivos

aguardo a última chamada

talvez vá

talvez voe

revisitar

sombra

.

há sons que transpassam os dias, chuva no telhado, sussurros, talvez lamentos vindos da madeira dos velhos armários. um galo distante na madrugada, goteiras na pia, rezadeiras em prece. ressonâncias, procissões, ressonares.

divido minha perplexidade em várias, o tempo passa e sigo me surpreendendo. sei que não deveria. mas suspeito que esse é um estado permanente. assim desde menina. ou mesmo antes de mim.

conecto-me, ou tento. religar, relicários. ingresso numa religião pré-pós-fim-do-mundo  e quase duvido dessa realidade que nos prende a matéria. penso nas marionetes, numa rebelião de todas elas.

uma coisa te digo, não é fácil ser profundo, nem profano. num mundo assim tão quase, tão clichê. essa palavra sempre me lembra chicletes. mas não quero me dispersar. difícil caminhar sobre pedras quando nem elas são concretas e assumem suas existências temperamentais. confesso. também sofro de turbulências e intempéries. por isso é sempre conveniente manter os cintos de segurança apertados.

costuro um sentido. na gaveta de bordados minha avó cochila entre um crochê e outro. ao lado dela um enorme carretel de linha crua, um outro de fino cordão dourado. as histórias se costuram sem pontos ou moldes premeditados, talvez sem futuro.

há gavetas para tudo, na maioria etiquetas explicam o óbvio, mas em algumas não posso entrar, acho que perdi a chave de uma meia dúzia. minha avó não pode sair da sua para me ajudar. não entendo uma palavra do que dizem os outros seres que por aqui passam.

tento prestar atenção na previsão do tempo para depois de amanhã. chove torrencialmente agora em algum lugar. nem todo avião cai mas todo voo é risco.   

pra mim

Ryan Hewett

Ryan Hewett

 

se fosse pra mim

o recado o sonho o chamado

partiria agora

em uma nave especial

lotada de poemas e doidices

não esperava sequer o avião

(ultimamente a neblina tem atrasado

ou mesmo cancelado voos)

 

voltava a velha casa

tirava as asas do porão

pedia aos pássaros dicas sobre o caminho

saltava da Pedra da Gávea

e ia beirando as praias

até bater na sua janela

e com a ajuda dos amigos alados

fazia ninho no seu coração