do outro lado do mundo

Ed Fairburn

Ed Fairburn

nestes dias

onde raízes se põe a mostra

contorcidas como não as vemos

enquanto se guardam nas profundezas,

não aguardo o inverno

mas o intenso calor dos trópicos

sempre cheio de alegorias

alegrias fáceis e, talvez,

entre multidões escondida

a envergonhada e óbvia solidão

que a custa de um enorme esforço

tentamos esquecer em alguma esquina

.

dilemas – a escolha que não fazemos

aí, escancarada num verão febril

não basta fingirmos ser feitos de barro

somos barro e vamos esfarelar

de qualquer modo em alguma estação

sem legenda, pósfacio ou absolvição

talvez uma chuva de lágrimas

ajude a moldar na argila ou areia

a arte que guardamos sem saber

e do embate: dor ingenuidade e fraude

acabemos por entender

alguma coisa desse infinito que somos

instantâneos

Colón – a praça
um pombo caminha
junto a minha sombra
quase sobre mim
como se eu não …
.
paro
se levantasse os braços
e ele não me notasse?
saberia que …
nada de testes
.
aguardo uma retratação
uma exposição de fotos
uma expedição longínqua
para algum território
ou vazio
.
são muitas setas planos motivos
aguardo a última chamada
talvez vá
talvez voe

algo de bom

feche os olhos

nesta varanda

as flores não vão

te deixar morrer

.

ouça o barulho do mar

entoe uma cantiga

conclua aquele pensamento

fugidio

.

confie

rasgue a carta de adeus

a bula do remédio chamado certo

.

relaxe

algo de bom

vai acontecer

.

repare no broto de girassol

em instantes

a casca da semente

vai se romper

.

os seres invisíveis

estão aqui

feche os olhos

para vê-los 

.

as flores sorriem

porque você veio

por você

simples

para interromper um silêncio

podemos  ler algum conto famoso

contar uma piada um causo

 

para corromper o silêncio

podemos mentir ou tirar do baú

segredos que juramos nunca revelar

 

mas se o silêncio for solo fértil  

basta sorrir e nada dizer

pois o que é pleno

simplesmente é  

quase

DSC09420

fim de tarde
quando as possibilidades do dia
já se guardam
para um outro amanhecer
quem sabe?
.
entre as cores do céu
há uma que me esquece de mim
outra que me leva
onde sonhos se perdem
descalços numa areia distante
.
até os pássaros suspendem o canto
nos aquietamos aturdidos alertas
numa atenção perdida
aguardando o desfecho
da luta diária noite-dia
.
sabemos quem vence agora
e quem voltará vitorioso
no próximo round
queria eu também ter
certezas assim
.
fim de tarde
todos os seres suspiram nessa hora
é quase possível perceber (talvez acreditar)
no pulsar das veias nas confissões de amor
no fluir dos rios que nem sempre correm para o mar

quase
a noite ainda na sala de espera

concerto solo

by desenharts (tumblr)

por hoje basta

o morto na rua

o beato na praça

amor e mordaças

a massa de tomate

no bigode e as moscas

caindo num prato

de fundo tédio

por hoje ficamos assim

ficando

eu me acompanho em concerto

pra solidão sem orquestra

amanhã

é uma outra fresta

cansaço

Foto Taylor James
(foto Taylor James)
.

eu queria fazer coisas com sentido, não, coisas que quebrassem o sentido
ditado pelo que já é posto, pelas forças cotidianas que nos fazem fingir
como se isso fosse o melhor de nós, queria matar um a um os meus medos
deletar passados, mostrar meus seios, abrir o peito e dizer sim ou dizer não
se fosse pra frear um trem descarrilhado, parar o tempo um dia antes
de um acidente rodoviário ou vascular, desfazer armadilhas, desatar

queria meu pensamento não tão disperso, intermitente, incontrolável
não me dividisse em dez, em mil, cada uma um olhar, um paradeiro
é difícil viver num planeta de espelhos por todos os lados
que não me repetem a mesma, não, ao contrário, me denunciam múltipla
diversa e ainda assim confinada a essa pele corpo roupagem

preferia não ter ido ao céu pois ele me deu a dimensão do inferno
se tivesse morado na Bolívia, não teria flertado tanto com o inimigo
batido tantas vezes na porta errada, assaltado noites frias
mas o tempo é isso, nada e tudo, um tambor de revolver
eventualmente vazio, potencialmente um tiro, um lugar escuro

está bem, não foi um bom dia, não queria, juro, incomodar ninguém
com essa minha poesia vômito, feita de sertões e dilúvios
verso que se desdobra, confessa e logo em seguida desdiz
passado, futuro, pretérito, conjugações numa língua difícil
onde cada verbo é um mundo ou mero sentido dúbio para uma noite mal dormida

deixe estar

by desenharts (tumblr)

Não desperte o pequeno pássaro
que ele não sabe ainda voar
e pouco entende de predadores
convém deixá-lo assim
na doce ilusão de não ser
.
Apenas cuide para não deixar rastros
que possam servir como pista
para estranhos se aproximarem
e machucá-lo por curiosidade ou carinho
.
Talvez seja melhor mesmo nem voltar
deixe-o quieto frágil indefeso
entregue ao fluxo
das marés do destino