Por que ontem era ainda cedo
e hoje já é tarde demais?
Por que ontem era ainda cedo
e hoje já é tarde demais?

(miró)
.
caminho por entre estranhos
tirando fino da sorte da dor
das notícias e do tédio
passo noites em claro
digerindo o óbvio
dirigindo uma história
um pouco drama um pouco farsa
na falta do que ser sou poeta
fujo do sério passo do severo fuso
de cabeça pra baixo me sinto melhor
o sangue desce as ideias gozam
a hora invertida me dá tempo de sobra
e da janela do meu quarto
fincado num alto prédio
fico a ver navios e trens
maria-nuvem maria-fumaça
(do livro fronteiras)
Tenho questões pendentes
que me esforço por resolver
embora duvide do valor do que se faz
da dor que nada traduz
da espera nos pontos de ônibus
Tenho reunido impressões
em fotos em abraços em branco
guardado amores em rascunhos
apostado em noites sem lua
em corpos sem rosto
em rostos sem amargura
Tenho feito de tudo um pouco
e pouco me ajudam os mapas
as viagens de qualquer espécie
e os dicionários de antônimos
Mas me esforço para sorrir
bilhar junto aos primeiros raios de sol
e embarcar em sonhos e planos
às vezes em alto mar
outras em voos rasantes
Viajo em rios caudalosos
em braços feitos cipó
um dia maremoto outro túnel do tempo
outro ainda lições de silêncio
ou um amor que dura infinito momento
sem tempo sem muros
semente
tomo um ônibus
transito pela cidade lenta
corpos suados pressa
paisagem sem foco
buzinas pensamentos
um rádio uma parada brusca
trechos de conversas roubadas
se misturam numa história insensata
relógio sem ponteiros
horas que dão em anos em nada
salto no ponto errado
talvez certo se tudo fosse diferente
caminho contando os passos
o cansaço é palpável
eu o carrego nas costas
e debaixo do braço
sento na praça
deveria seguir mas não posso
minhas pernas de cimento
travam duelos com as asas
e esse coração vertigem
fim de tarde
quando as possibilidades do dia
já se guardam
para um outro amanhecer
quem sabe?
.
entre as cores do céu
há uma que me esquece de mim
outra que me leva
onde sonhos se perdem
descalços numa areia distante
.
até os pássaros suspendem o canto
nos aquietamos aturdidos alertas
numa atenção perdida
aguardando o desfecho
da luta diária noite-dia
.
sabemos quem vence agora
e quem voltará vitorioso
no próximo round
queria eu também ter
certezas assim
.
fim de tarde
todos os seres suspiram nessa hora
é quase possível perceber (talvez acreditar)
no pulsar das veias nas confissões de amor
no fluir dos rios que nem sempre correm para o mar
quase
a noite ainda na sala de espera
eu queria fazer coisas com sentido, não, coisas que quebrassem o sentido
ditado pelo que já é posto, pelas forças cotidianas que nos fazem fingir
como se isso fosse o melhor de nós, queria matar um a um os meus medos
deletar passados, mostrar meus seios, abrir o peito e dizer sim ou dizer não
se fosse pra frear um trem descarrilhado, parar o tempo um dia antes
de um acidente rodoviário ou vascular, desfazer armadilhas, desatar
queria meu pensamento não tão disperso, intermitente, incontrolável
não me dividisse em dez, em mil, cada uma um olhar, um paradeiro
é difícil viver num planeta de espelhos por todos os lados
que não me repetem a mesma, não, ao contrário, me denunciam múltipla
diversa e ainda assim confinada a essa pele corpo roupagem
preferia não ter ido ao céu pois ele me deu a dimensão do inferno
se tivesse morado na Bolívia, não teria flertado tanto com o inimigo
batido tantas vezes na porta errada, assaltado noites frias
mas o tempo é isso, nada e tudo, um tambor de revolver
eventualmente vazio, potencialmente um tiro, um lugar escuro
está bem, não foi um bom dia, não queria, juro, incomodar ninguém
com essa minha poesia vômito, feita de sertões e dilúvios
verso que se desdobra, confessa e logo em seguida desdiz
passado, futuro, pretérito, conjugações numa língua difícil
onde cada verbo é um mundo ou mero sentido dúbio para uma noite mal dormida
alinhavo uma história
quase possível, quase crível
como se não fossem irreais
as mais concretas, ainda que absurdas
histórias de guerra e/ou de amor
.
fecho o capítulo
capitulo diante da madrugada
tomo uma taça de vinho
na varanda entre flores, duendes
pequenas árvores da felicidade
silêncios e alecrim
.
um dia isso tudo terá um fim
meu mínimo e precioso jardim
a lagoa ali defronte
o guri triste a pedir ou roubar
a tia em sua inacessível viagem
e o velho amigo ao meu lado
amenizando marés e noites rasantes
.
não faz sentido esperar
o sucesso, o amor, seja lá o que for
fui a tantos mundos, passados futuros
tentei refazer alguns caminhos
mas não há chances
de se repetir qualquer lugar
.
por isso brindo
ao capítulo findo
de um inacabado livro ou dia
a essa noite fria ainda que bela
aos motivos que nos fazem amanhecer
e à vida, que é o que temos
ainda que nem sempre saibamos
exatamente
que fazer com ela

by in-dissoluvel (tumblr)
dias atrás encontrei uma pasta
com postais, fotos, cartas
estas, especialmente, bem antigas
não sei porque as perdoei
das cinzas a que submeti tantas outras
.
releio, tento lembrar
não sei porque exatamente as escolhi
algumas, que gostaria de ainda ter
incendiei sem mesmo saber
.
agora é mais simples ou ao menos mais rápido
deletar ou perder num computador antigo
num pen drive esquecido numa bolsa qualquer
.
tempos modernos
assépticos, luz fria
nada de papéis para amarelar
em alguma gaveta do tempo

by desenhando-o-mundo (tumblr)
Na varanda
a rede abraça o corpo estendido
ao mínimo movimento do vento
ela distraída responde
ligeiro balanço
.
A brisa é fresca
acaricia o rosto, ameniza a dor
os sonhos devaneiam pelo jardim
há duendes brincando junto ao riacho
e flores aguardando a primavera
.
No fim da tarde as nuvens se adensam
crianças que há muito cresceram
entoam cantigas nessa hora
enquanto o céu escurece
os corações envelhecem
.
Estrelas sempre arrancam de nós
suspiros e atordoamento
desnudam nossa pequenez
apontam tantos mistérios
nos defrontam com o tempo
.
Este que leva e traz
e sem aviso toca a campainha
lá no longe da porteira
que nada separa
e tudo indefine