sem palavras

Eu poderia requentar palavras doces

Ou dizer coisas que arranham

Apenas para me fazer presente

.

Mas pensando bem

Não há razão

As palavras são afiadas

E ficam perfurando depois

.

Escolho não mexer

No lado do peito onde guardei

Uma caixa oblíqua de memórias

.

Por isso apenas sorrio

Conto até cem e saio

Como quem entrou por engano

Luto animal

No dia em que o marido partiu

Ela levou o cão ao veterinário

Acreditando que de tão apegado

Adoeceria

O veterinário o examinou

Receitou vermífugo e vitaminas

– Não seria prudente um tranquilizante? –

Ela disse, quase implorando

– por conta da ausência, o senhor entende?

Ele, pouco dado a sentimentalismos, disse apenas

Que não tratava de humanos

.

Ela voltou para casa

Chamou-o pelo nome do marido

E deixou, pela primeira vez,

Que dormisse no quarto bem junto a sua cama

Logo ela, que sempre impôs distâncias

Dá pra fazer silêncio aí?

É cedo, mas vou dormir, apagar a mente após virar e desvirar notícias, crimes, guerras, horrores. É fácil para mim dormir (mesmo que de fato não seja), as bombas estão explodindo longe, tenho comida na geladeira e não falta água, nem chove muito e mesmo que chovesse, não moro na beira de um barranco ou rio.

É cedo e poderia sair, ir as ruas cheias de gente sem máscara, beber e rir, mas me pergunto de quê.  Fazer exercício numa academia com ar-condicionado gelando os ossos e música atropelando os sentidos. Ou caminhar na praia, mesmo que olhando para os lados e sem usar relógio, celular ou tênis caro.  Isso. Poderia sair, ainda que com medo. Mas isso é tão pouco, tão ínfimo que dá vergonha sentir esse medo e essa aflição comparado ao que se passa lá fora.

É cedo e vou dormir, carrego comigo um pouco de vergonha desse nosso país sem memória ou caráter, um monte de notícias para separar o que de fato é ou o que é invenção, e sendo invenção o que é para desconsertar, o que é para incitar, sei lá. Separar joio do trigo… ainda mais agora que o trigo está tão caro ou separar palha de arroz e cevada do grão de café, já que o café puro é para exportação. São tantos assuntos, tantas palavras.

Vou dormir e não tentar entender como alguém espanca até a morte um outro por nada, como gente se arrisca a morrer na fronteira do México em busca de um sonho. Ou ver notícias e filmes de gente que pode ir para onde quiser com seus vistos gold, cheios de ouro para garantir a vida em qualquer lugar do mundo ou mesmo em outro planeta.

É cedo, pode ser que amanhã seja apenas um dia a mais com bombas concentradas na Ucrânia, extermínios aqui e ali. Pode ser. E isso nos garante mais um dia. Vou dormir cedo e se amanhã ainda houver amanhã, espero que possa haver um acordo, um mínimo de humanidade no coração de todos. É cedo e vou tentar apagar a mente, desligar e aguardar passiva e impotente que decidam apertar o botão e terminar com tudo ou seguir assim, matando pelas beiradas.

Quero dormir, já fechei tudo, nenhum ruído de fora.

Mas esse falatório… não para.

Ei!

Dá pra fazer silêncio aqui?

algum alento na imensidão

Admiro as estrelas

A viagem cadente

Os pedidos feitos

Tantos por serem tantas as estrelas

Aos olhos de quem tem um céu limpo

Para contemplar

.

Quantos anos se passaram

Desde que por tanto admirar o céu

Me percebi mínimo grão?

.

Essa sensação de tudo olhar

Sob tantos ângulos

Como estivesse em milhares de janelas

E em lugar algum

.

Essa gota de esperança

Que surge de repente

No orvalho da noite

No mais fundo abraço

Num sentimento limpo e simples

De querer bem

E quem quiser…

Cansei de fingir felicidade

Usar proparoxítonas e saltos altos

Quem quiser me ver

Terá que atravessar a esquina

Desviar disso e daquilo

Tropeçar na dor

Cair na real sem anestesia

E comigo tatear o escuro

Grafitar muros

E (não) pedir socorro

encontro adiado

Te encontrarei depois

Do ontem que levou

Muitos abraços e sorrisos

Te encontrarei no antes

De um amanhã que talvez chegue

Quase livre de tantos mortos

Quase esquecido dessa sombra

Que tomou os dias as horas

Essa epidemia quase uma ficção

Se não fosse real

Com seus caixões

Não cheios de pedra

Como dizem os boçais

Mas cheios de sonhos partidos

Amores sustados

E um cortejo de órfãos

Órfãos de pais e de filhos

De um país que caminha

Frio e pretensioso

Para o abismo

.

Te encontrarei em algum bar

Noite ou fim de semana

Passearemos em algum parque

Praia ou montanha

Sem dizer nada

Que é a conversa possível

No antes do depois