
Chegou devagar e ficou me olhando até eu me voltar. Então perguntou se poderia ficar. Se não fizer barulho nem me incomodar. Ele ficou, no canto da sala, misturado aos móveis e algumas folhagens. Horas depois, preparando o jantar, lembrei-me dele. Aceita uma sopa ? Estava faminto, dei-lhe leite e pão. Sorriu. Ajudou-me a tirar a mesa e arrumou a cozinha enquanto tomei banho. Voltou para o sofá e esperou. Dei-lhe uma toalha e mostrei o banheiro. No sofá deixei uma blusa e roupa de cama. Pela manhã encontrei o café servido. Tomamos em silêncio, e alguns momentos pousava seus olhos mansos em mim.
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Uma noite acordei e ele estava sentado na beira da cama. Posso ficar aqui? perguntou apontando o lado vazio. Se não se mexer muito. Seu sono veio logo, tranquilo. Acordava sempre antes e deitava-se depois, mal percebia seus movimentos.
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Acostumei-me a ele como às plantas que enchiam a casa de perfume e cor. De seu, acabou trazendo poucas roupas e muitos discos. Posso colocar um? Desde que eu goste e não muito alto. Um som agradável envolveu a casa. Tem outra coisa: em dias nublados e de chuva fina gosto de ouvir Chopin. Não precisei mais abrir os olhos pra saber que chovia, a música inundando o quarto.
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Sempre gostei de ler, pediu-me que o fizesse em voz alta. Só poemas e quando cansar você continua, ele concordou. Romance. Líamos sentados no sofá, às vezes acompanhados por Schumann, outras por Bach, Haydn. Músicas cantadas só a noite, quando cansados dos livros ficávamos a sonhar.
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Um dia propôs passearmos. Onde houver muitas árvores, respondi. Caminhadas, ar puro, o sem-fim de verdes da floresta, as mãos dadas. Ganhávamos pouco a pouco a certeza um do outro e certos hábitos. Cinema às terças. Visitar o mar quando seus lhos perdiam a cor. Carne-seca e feijão-manteiga quinzenalmente, preparados por ele. Chopin em dias cinzas. Macarronada aos domingos. Assim íamos compondo os dias.
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Choveu sem parar toda a noite. Pela manhã Chopin trouxe o mais triste cinza que já vi. Acordei chorando infinitas coisas. Saudade, talvez, nem sei de quê. Tomei café sem encará-lo. Percebi que perdera o costume de sofrer. Pus-me a bordar iniciais num lenço. Ele me seguiu todo o dia, dividindo o silêncio. À noite, jantar findando, olhos fundos, está triste?, perguntou. Fiz que sim. Dói muito? Dói, você não sente? Sinto você, posso te abraçar? Acenei, apenas, percebendo que dessa vez não tinha restrições a fazer. Dormimos assim e se não era a cura, aliviava bastante.
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Gostaria que conhecesse minha mãe, disse uma tarde. Fomos num fim de semana. A mãe e seus afazeres. Costurava e se ocupava de muitos gatos e pássaros. Em cativeiro só criamos tristezas, disse, como se desculpando pela confusão que os bichos faziam. Jantamos e fomos até a praça, sentamos num banco frente à linha férrea. O trem veio e partiu, voltamos para casa, onde a mãe já adormecera.
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Pela manhã acordei com a algazarra dos pássaros no quarto. Faltava-me seu abraço. Na cozinha o barulho dos grãos nas latas, ela catava arroz, ele feijão, compenetrados. Sentei-me. Havia pão, manteiga, queijo e geleia sobre a mesa posta. Tomei café em silêncio e fui para junto deles. Um punhado de arroz deslizou em minha direção.
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Após o almoço fizemos pequena sesta. Pegaríamos o trem às três. Na estação a mãe me fitava, os mesmos olhos mansos do filho. Abraçamo-nos. Só na cabine, o trem em movimento, lembrei-me de que não sabia seu nome.
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Voltamos aos nossos hábitos. Chopin tocou toda a semana. Lemos Fernando Pessoa. Iniciei um casaco de lã para ele, noites frias e tempestade. Numa madrugada iluminada por relâmpagos, despertei subitamente fugida de um pesadelo. Um enorme mal-estar se apossando de mim. Acordou preocupado, o que você tem? Meu corpo sacudia febre, o dele junto. Levantou-se, vou preparar alguma coisa. Fiquei no escuro, saudade da mãe e dele ali na cozinha. Antes eu não sabia que toda a vida procurei por eles. Voltou com compressas, chá e carinho. Depois apanhou o cobertor e me agasalhou. E disse um tanto apreensivo: talvez devêssemos, fazer amor, completei. Fomos, sem nome, quase cegos, mas sem nenhuma pressa, cientes do enorme tempo que levávamos para virar cada página.
Do livro A Palavra em Construção, coletânea, 1992
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