artifícios

Um dia você vai perceber

que tudo o que somos é mero artifício

Imagem de miragem por trás de tanta sede

Sombra escura no fundo do espelho

Onde se olha e não se apaixona mais

Onde busca e não encontra conforto algum

Um dia desses o álcool não fará efeito

Nem toda droga dará alívio

Para a hora que não passa

E ao longe o farol aponta o vazio

O sol que se desmancha pó

E o instante perdido de um sonho

Sempre distante e no mesmo lugar.

Voz e silêncios

Ouço vozes distantes

De tão longe não posso ver

Mas ouço, por um canal de vento

Há uma explicação para isso

Que desconheço, mas o som chega

Houve um tempo em que tentava descobrir

Para além de cada carreira do cafezal

De cada moita de bambu

Os donos das vozes

Mais tarde passei a me concentrar

Unicamente nas vozes

Tentando captar os diálogos

Ouvi conversas fúteis

Juras de morte, intrigas

Nada disso me interessou

Hoje olho a imensidão

Não decifro palavras no vento

Sei que toda gente sonha, sofre, sorri

Só, mergulho no vasto do existir

Sem explicações, sem filosofias

As perguntas (inumeráveis), calo

Fico a escutar o ar, o tempo

A observar distâncias

Paisagens, poemas.

movediço

Não somos iguais

Sequer parecidos

Onde nos vemos hoje

Já nos vimos outro dia

 

Cada um ensimesmando:

Onde foi que nos plugamos ?

Os dois procurando:

Onde foi que nos perdemos ?

 

Não somos parecidos, nem poderíamos

não me pareço com quem fui ontem

talvez você seja quem diz, mas desconfio

que o caminho que trilhamos é movediço

 

As vitórias, aos poucos, viram troféus

sobre os armários, diplomas emoldurados

grudamo-nos nas paredes

passado, passado, passado

 

Não somos bons nem maus

erramos aqui e ali, muito ou quase

tentamos um final feliz, bem sei

mas não fomos competentes nisso

 

Racionalizamos tudo

a felicidade, fica para onde ?

dá para pagar com cartão ?

fomos iludidos ou somos ilusão  ?

 

Olho a tarde, única certeza

algumas coisas tardam

outras nem chegam

e tudo, um dia, passa.

breve hiato

Me desculpo agora pelo silêncio

Que mastigou minha fala nestas últimas semanas

Não haveria porque fazê-lo se não fosse eu mesma

Aquela que se inquieta com isso

 

Mas, para meu alívio, algo entre a redenção e um novo precipício

Informo que o silêncio foi um tempo digestivo

Uma cobra que devorou um boi

Uma corda que se enredou em mil nós

 

Observo agora a mínima vida que germina

A semente que caiu em solo inábil

Mas que ainda assim, encontrou caminho,

será uma árvore forte, ainda que retorcida

 

Me apaziguo com minha temporária ausência

Agora que as palavras transbordam

Boi digerido pela cobra

Onda rebentando ao pé da casa

 

Queria convidar os amigos

Reuni-los em volta de uma fogueira

Ver queimar beijos partidos

Ler nas chamas um novo dia

 

Tenho tentado traduzir o indizível

Abraçar o alto da montanha, tocar o frio

Mas a voz que jorra palavras no papel

Nada explica, lança chamas, perguntas.

Festa descolada (deslocada)

Não vim para o jantar

se tivesse vindo teria trazido algo

ainda que fosse um vinho

ou uma sobremesa comprada segundos antes de chegar

E chegaria sorridente, falaria um pouco de tudo

parecendo uma pessoa agradável e de bem com a vida

aos olhos de quem não quer ver

Mas preferi pular esta parte

deixar o cenário livre para outros atores/atrizes

e assumir que hoje em dia prefiro

a companhia das formigas, a vista da minha janela

e qualquer coisa que exija menos esforço

do que fingir inteligência, senso de humor e felicidade

E quer saber ? Não me inclua mais na sua lista

de agradáveis pessoas para uma reunião intimista

não voltarei enquanto a festa for a maneira

de preencher o vazio que nos persegue

Ficarei maturando minha natureza estranha

assumindo a falta de vocação para essa ladainha

não fugirei para uma ilha deserta

(nem sei o que levaria, se tivesse que ir para uma)

ficarei no meu canto, bicho quieto e manso

eu e meus pesadelos, só com meus devaneios.

. . .

Nem tanto nem tão pouco

O que quero dizer com isso ?

Não faço a menor idéia

Vou cerzindo um tecido turvo

Desfalcado de partes e de sentido

Me pergunto várias vezes

O que vim buscar aqui.

Não respondo

Mesmo que quisesse

Ou que pudesse, não o faria

O funcionamento desordenado de tudo

Acalma meu próprio caos

Minha atenção dispersa

Confunde-se com a multidão.

Me encanto e desespero com a impossibilidade

Não consigo entender

Não posso julgar

Não ouso respostas

Sem compromisso ou propósito

Colho imagens singulares.

A máquina fotográfica se interpõe

Me aproxima do real e me protege

Entre zooms e distanciamentos

Ela captura o que extrapola meu entendimento

E no quarto escuro da minha noite/perplexidade

Nada se revela.

um

 

Tive vontade de te escrever

Talvez por efeito de poemas relidos

Dum flerte avesso num viés da madrugada

Da rua vazia, do vento frio

Derramei palavras como quem chora

O lado cético esquerdo de mim

Forçando a mudar de assunto

Ligar a tv, o som

Mas havia um ímpeto, quase um grito

E fui escavando o resto da madrugada

FUTUROS

Quem olha assim de longe o horizonte

espera alguém ou pensa em quem partiu ?

terá saudades de ontem ou de um futuro qualquer?

decide ficar ou planeja partir antes de um novo dia ?

Que diálogos sem palavras trocarão seus inúmeros habitantes ?

a princesa do alto da torre, a cigana, a cigarra, a flor do deserto

a menina que um dia sonhou ganhar o mundo a qualquer custo?

qual delas vencerá neste minuto ?

Qual delas cairá para sempre após a próxima escolha ?

Peças de um dominó de brinquedo

Folhas novas de uma árvore antiga

Em que baú guardar (ou não) tantas faces e desejos ?

França, junho, 2010